Republicano convicto, entre o ateu e o agnóstico, anticlerical, o meu avô materno era quem me levava pela mão a ver a imagem de Nossa Senhora da Nazaré. Fazia-o sempre pelo Natal e aproveitava para, pelo caminho, me fazer espreitar o Menino Jesus, deitado no berço que a vitrine guardava, pousada sobre o arcaz que servia de base a um Cristo Crucificado que logo ali lhe anunciava o destino. Estranha imagem, aquela, onde a beleza se acomodava apenas na cor e nos dourados dos mantos e na refulgência dos cordões que lhe pendiam dos ombros, em pagamento de promessas no fundo das quais se jogava a vida e a morte, o mar e a doença, o desejo, sempre fantasiado, de uma eterna salvação.
Criança, como era ainda, não entendia o sentido último daquelas visitas que, não raro, a Páscoa vinha convidar a repetir. Gostava, porém, de ver o Avô sempre que, sentado ao lado do motorista do carro de praça que fretava para o levar a São Martinho, a Caldas, a Lisboa, ao regressar e no desfazer da curva da Barca, mal via os campanários da Igreja do Sitio, lá ao alto, onde se recolhia a Senhora, curvar-se perante eles, retirar o chapéu e, em jeito de vénia ou cumprimento, venerar Nossa Senhora da Nazaré.
Vivia, eu, por isso, rodeado de interrogações que a descultura da infância mais avolumava. Porquê assim num avô sem missa, sem preces, sem visitas clericais? E porquê diante daquela imagem, de rosto carcomido pelo tempo, tomando ao colo um menino já mais adivinhado do que real, quando, no alto da Pederneira, do outro lado das arribas, morava a Senhora da Soledade, afinal a mesma, com um rosto suave, belíssimo, encantador aos olhos de uma criança tão disponível para se render? Que imagem era aquela? De onde vinha? Que história transportava consigo? Por onde andara? Onde se perdera e perdera a finura do seu rosto? De onde lhe brotava uma tal força, tão enigmática que levava um Avô austero, de antes quebrar que torcer, a inclinar-se diante dela e a levar-lhe, em oferenda de futuro, um neto, ainda criança?
Do meu Avô, herdei as vénias à Senhora. De mim, enquanto criança, retive as perguntas e, por via delas, cheguei ao Mistério e a uma possível explicação para um culto de dimensão universal, que se espalha pelos mais recônditos escaninhos do mund
o e enche a alma das mais variadas comunidades. Dos Santos, das mais diversas representações de Maria, os fiéis reclamam respostas, o traçado dos caminhos, pedem desembaraços, soluções de vida. Ali, diante da imagem de Nossa Senhora da Nazaré, onde chega também o eco dos pedidos e a contrapartida das promessas, o que persiste são as interrogações, isso mesmo que conduz ao desejo de desvendar o Mistério.
Peregrina, como foi e é, Nossa Senhora da Nazaré, vai ao encontro das gentes, espraia-se pelo mundo, toca todos os Continentes, multiplica as comunidades de fiéis, incorpora diversidade no mesmo culto, chama o pagão para o campo da religiosidade mais profunda, estende o ecumenismo para fora das canónicas expressões de fé religiosa, faz, enfim, do seu culto também uma cultura, onde o antropológico se reencontra com as origens da própria religião.
Não é apenas o povo que vai a Ela. É Ela quem se acerca do seu povo.
Nossa Senhora das Perguntas. As de todos e as minhas. As mesmas de todo o tempo. Aquelas que me levam, ainda hoje, a inclinar-me sempre que regresso à minha terra. A esse lugar onde mora a imagem primeira de Nossa Senhora da Nazaré.
Álvaro Laborinho Lúcio